O debate é carregado de polêmica e a literatura é extensa quando se fala em tratamento não convencional ou complementar do câncer. As divergências crescem se a possível solução estiver em uma planta envolta em tabus, a maconha. A discussão ganhou novo ângulo nesta semana, quando um juiz federal de Brasília determinou que a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) retire o tetrahidrocanabinol (THC) da lista de substâncias proibidas. Pela decisão, que é provisória, fica liberada a importação de remédios que contenham THC, a exemplo do que já ocorre com o canabidiol, outro componente ativo da maconha.
Para alguns pesquisadores da área, avanços em estudos não encontram sincronia com a exigência de que a cannabis sativa só poderá ser oficialmente considerada medicamentosa depois de amplamente testada em pessoas.
Muitos atribuem as dificuldades de seguir em frente ao preconceito, à falta de informação ou à simples demonização da maconha. Outros falam na falta de interesse da indústria farmacêutica em produzir remédios de fácil manipulação e baixo custo que venham a competir em um mercado bilionário, de medicamentos convencionais.
Apesar de evidências de eficácia, o uso da maconha contra o câncer continua restrito, mas o alcance das barreiras vai sendo testado
Existem registros de mais de 11 mil estudos científicos no mundo sobre o uso medicinal da cannabis sativa, dos quais quase 1.200 dedicados ao tratamento do câncer, conforme dados do portal PubMed. O Brasil foi um dos primeiros a desenvolver estudos nessa área de pesquisa, ao lado de Israel, Reino Unido e Itália.
Elisaldo Carlini, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tem seu nome inscrito junto ao do israelense Raphael Mechoulam e ao do inglês Roger Pertwee como pioneiros na descoberta das propriedades terapêuticas dos canabinóides. O primeiro estudo clínico sobre o uso do CBD (canabidiol) para tratamento da epilepsia foi feito há 35 anos por Carlini, em parceria com Mechoulam.
A britânica GW Pharmaceuticals foi a primeira a realizar testes clínicos em pacientes com câncer no cérebro, usando a droga chamada Sativex, que reúne os dois elementos da maconha, o CBD e o THC. Concluía-se então um longo período de testes básicos realizados em laboratórios na Espanha e em outros países. "Estes são apenas os primeiros passos no desenvolvimento de extratos de maconha para o tratamento de pessoas com diferentes tipos de câncer", diz William Notcutt, professor da Universidade de East Anglia, um dos responsáveis pelo desenvolvimento do Sativex, já comercializado em 15 países para tratamento de diversas doenças.
No Brasil, a pesquisa clínica com canabinóides inexiste. "Apesar de termos sido os primeiros a demonstrar os efeitos antiepiléticos do uso clínico do CBD, não conseguimos avançar", diz Carlini.
Em janeiro, a Anvisa liberou a importação do produto para tratamento de epilepsia em crianças. Mas para o tratamento de câncer e outras doenças a estrada ainda é longa. Enquanto isso, Canadá, Espanha, França, Inglaterra, Israel e alguns Estados americanos fazem uso do óleo do CBD até como suplemento alimentar e o laboratório americano Enzo está testando mais de 60 derivados sintéticos de canabinóides. "Acho difícil o Brasil ser vanguarda na pesquisa científica. E, quando é, não segue em frente", afirma Carlini."
Se a ciência avança lentamente, outros registros de progresso vão ganhando forma. Atualmente, no Brasil, um grupo de médicos prescrevem o uso do CBD no combate e alívio de sintomas de diversos tipos de câncer. Um deles é o oncologista mineiro Leandro Cruz Ramires da Silva, presidente da Associação Brasileira dos Pacientes de Cannabis Medicinal (Ama Me), que documenta a melhora do estado clínico dos 116 associados, sendo seis com diferentes tipos de tumor cancerígeno.
Com base nesses resultados e também amparados em estudos científicos, no mês passado Ramires e acadêmicos defensores dessa forma de tratamento conseguiram ir um pouco adiante. Obtiveram autorização da Anvisa para o uso do canabidiol em doenças graves e com ausência de sucesso no tratamento convencional - entre elas, o câncer. "A experiência com os pacientes que acompanho tem mostrado que a expectativa de vida aumenta, com muito mais qualidade e diminuição acentuada da dor", afirma Ramires.
Os canabinóides não são os únicos a sofrer restrições. É esse também o caso de uma substância sintética da fosfoetanolamina, com presumida eficácia em tratamento contra o câncer, desenvolvida pelo químico Gilberto Orivaldo Chierice, pesquisador do Instituto de Química de São Carlos (IQSP), da USP. A história, que ganhou repercussão nacional nos últimos meses, colocou Chierice e doentes dispostos a usar a substância em posição antagônica à de médicos e do IQSP, que contestou publicamente a eventual validade, tanto científica como legal, de seu uso para fins medicamentosos. Cápsulas do produto, produzidas nos laboratórios do próprio instituto desde o início dos anos 1990, eram distribuídas gratuitamente por Chierice.
O pesquisador afirma que tudo foi feito conforme acordo firmado entre o IQSP, o hospital oncológico Amaral Carvalho, de Jaú, no interior de São Paulo, e o Ministério da Saúde. O professor, que se aposentou em 2013, quando eram produzidas 50 mil cápsulas por mês, declarou-se indignado com a decisão do IQSP de suspender a produção e distribuição do medicamento em julho de 2014. Vários pacientes recorrerem à Justiça para obter a droga. Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, no mês passado, favorável à medida cautelar de uma paciente, a discussão retornou e a fabricação foi retomada. No momento, as cápsulas são entregues apenas a quem tem o apoio de decisão judicial.
Chierice, que possui mais de 400 trabalhos científicos citados internacionalmente, busca agora discutir a questão em plano nacional. "Tenho sido procurado por laboratórios farmacêuticos que querem comprar minha patente. Mas não quero enriquecer. Quero que se resgate a pesquisa que foi feita e que o remédio seja distribuído pelo SUS gratuitamente." No mundo, segundo o portal PubMed, há 1.209 trabalhos científicos sobre a eficácia da fosfoetanolamina no combate ao câncer, sendo 690 em humanos.
Fonte: Valor Econômico
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