A cientista Celina Turchi, médica especialista em doenças infecciosas da Fiocruz Pernambuco, costuma dizer que nunca, nem em seu pior pesadelo, imaginou que algum dia veria uma epidemia de microcefalia em bebês. Em 2015, o pesadelo virou terrível realidade e Celina viu-se diante de um dos maiores desafios de sua carreira: tentar descobrir o que causava esse grave déficit neurológico nos recém-nascidos.
Meses de trabalho e uma rede de colaboradores - epidemiologistas, especialistas em doenças infecciosas, pediatras, neurologistas e biólogos especializados em reprodução - conseguiram identificar o vetor: o mosquito Aedes Aegypti, transmissor da dengue, do vírus da zika e da chikungunya era o responsável pela epidemia. "Foi uma verdadeira tragédia social. Mas prefiro pensar que estamos muito melhor do que há um ano", afirma a cientista.
No mês passado, a pesquisadora de 64 anos foi escolhida como uma das dez cientistas mais importantes do mundo de 2016 pela revista britânica "Nature" por causa da pesquisa que descobriu a relação entre a microcefalia e o vírus da zika. "Considero a escolha um reconhecimento à comunidade científica brasileira. É um reconhecimento ao protagonismo do Brasil na identificação da causa dessa epidemia", diz Celina ao Valor.
A rapidez na identificação da causa e da epidemia que já registra cerca de 2.000 casos, porém, não significa que a população deva descuidar-se. O uso constante de repelentes, em especial por mulheres grávidas ou que pensam em engravidar, e o combate sem trégua aos focos do mosquito, ressalta a cientista, ainda são a melhor forma de evitar a contaminação.
"Antes de três, cinco anos, dificilmente teremos uma vacina. Até lá, a população deve estar atenta e se proteger e o Estado deve proporcionar toda a informação possível para que isso aconteça. Você consegue imaginar o impacto econômico que pode ser causado por 20, 30 mil pessoas que vão precisar de cuidados a vida inteira?
Valor: Quando começou a suspeita da relação entre o vírus da zika e os bebês que nasciam com microcefalia no Recife?
Celina Turchi: Entre setembro e outubro de 2015 duas neuropediatras da rede pública - Ana e Vanessa Van der Linder, mãe e filha respectivamente - constataram a ocorrência dos casos e resolveram dar o alerta para a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco. Elas consideraram que estava ocorrendo algum evento que precisava ser investigado. Logo em seguida, o médico Carlos Brito levantou essa hipótese de contaminação pelo vírus zika. O problema é que, nesse momento, não havia nada na literatura científica sobre a associação entre a infecção pelo zika e a má-formação no recém-nascido.
Valor: Para os padrões de muitas pesquisas científicas, esse trabalho foi muito veloz. Como se explica isso?
Celina: Aconteceu graças a uma rede de colaboradores que mobilizou cientistas do mundo inteiro. Houve um esforço concentrado e, nesse trabalho, as autoridades brasileiras, o Ministério da Saúde, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco tiveram um papel importantíssimo. Não apenas com o repasse de recursos, mas cedendo os mais reconhecidos cientistas do Brasil para que se engajassem na pesquisa. Outro ponto de que gosto muito de citar é a transparência e a coragem com que o Ministério da Saúde tratou o assunto, assumindo que se tratava de uma emergência. Conhecemos situações semelhantes em que o temor de gerar pânico entre a população leva as autoridades a ocultar a gravidade de uma epidemia. O comportamento do Brasil permitiu que a Organização Mundial da Saúde OMS ampliasse a recomendação e emitiu um alerta mundial sobre a epidemia.
Valor: Qual foi a maior dificuldade que a senhora e os demais cientistas enfrentaram para conseguir relacionar o vírus da zika com a microcefalia?
Celina: O maior desafio foi o fato de que não tínhamos testes confiáveis sobre o vírus. Da mesma forma, não havia um consenso em relação à definição de microcefalia. Mas o intenso contato dentro da rede de especialistas formada por ela permitiu gerar evidências suficientes para ligar a infecção por zika e a doença no primeiro trimestre da gravidez.
Valor: A senhora acha que as autoridades sanitárias no Brasil estão sendo eficientes no tratamento e acompanhamento dessas crianças?
Celina: Reconheço que houve um certo atraso nessa resposta. Mas o Ministério da Saúde e as Secretarias da Saúde nos Estados estão trabalhando para proporcionar o melhor cuidado possível, Mas a prioridade precisa continuar sendo na prevenção. Antes de três, cinco anos, dificilmente teremos uma vacina. Até lá, a população deve estar atenta e se proteger e o Estado deve proporcionar toda a informação possível para que isso aconteça. Você consegue imaginar o impacto econômico que pode ser causado por 20, 30 mil pessoas que vão precisar de cuidados a vida inteira?
Valor: Em que fase da pesquisa vocês estão agora?
Celina: Estamos trabalhando com 200 casos de recém-nascidos com microcefalia e 400 sem a doença, tentando quantificar com maior precisão os riscos e investigar outros fatores na epidemia de microcefalia. Sabemos, no entanto, que não é somente a microcefalia que pode ser causada pela epidemia. E, sim, aquilo que denominamos de "síndrome da zika congênita", um espectro muito mais amplo de anormalidades em que mesmo crianças com perímetro cefálico normal podem ter sido infectadas e podem apresentar outras alterações neurológicas.
Valor: Quais são?
Celina: Queremos saber se há interferências de outros anticorpos. Se, por exemplo, mães que já foram infectadas por dengue podem ter risco maior na infecção pelo zika e o aparecimento de microcefalia nos bebês. Também estamos acompanhando mulheres grávidas tentando identificar em que momento da gestação a infecção aumenta a probabilidade de que as crianças nasçam com anormalidades, seja com microcefalia ou seja em um espectro mais amplo.
Fonte: Valor Econômico